ENTREVISTA

MARCOS BAGNO: UMA LUTA INCESSANTE

Por Artarxerxes Modesto

Doutor em língua portuguesa pela Universidade de São Paulo, mestre em lingüística, poeta, tradutor, contista premiado e professor de Lingüística na Universidade de Brasília (UnB). Autor de mais de vinte livros e pesquisador incansável. Este é Marcos Bagno, um dos mais respeitados lingüistas brasileiros. Polêmico, Bagno fala de diversos assuntos atuais que são debatidos no meio acadêmico: educação, estrangeirismos, preconceito lingüístico, política lingüística e os rumos da lingüística brasileira.

REVELA - Prof. Marcos, o senhor está envolvido neste momento em alguma atividade de pesquisa?

MARCOS BAGNO - Estou sempre envolvido com alguma pesquisa ou, melhor, tentando levar adiante alguma reflexão já iniciada. A todo momento, alguma nova reflexão me leva a reconsiderar coisas já ditas e/ou escritas, e parto para a reformulação de artigos, livros, aulas etc. Continuo muito envolvido com a problemática da norma lingüística e suas implicações para o ensino. Já organizei dois livros sobre o tema: NORMA LINGÜÍSTICA (2001) e LINGÜÍSTICA DA NORMA (2002), ambos publicados pelas Edições Loyola. O primeiro livro traz artigos de pesquisadores estrangeiros, sobretudo canadenses de língua francesa, e o segundo, só de autores brasileiros. Acredito que a partir desse grande volume de reflexões será possível a gente combater o uso e o abuso que se faz do termo "norma" e, sobretudo, da expressão "norma culta", que é muito mal empregada, principalmente pelos defensores da tradição gramatical e de uma língua portuguesa que não existe no Brasil. Estou agora refletindo sobre as implicações da eleição de Lula no que diz respeito às concepções de língua "certa" e língua "errada" vigentes no senso comum. Ao mesmo tempo, procuro retraçar um pouco da história lingüística do Brasil, recorrendo a abordagens sociológicas e históricas. Vamos ver no que vai dar.

REVELA - Você ganhou notoriedade no meio acadêmico através da teoria do "Preconceito Lingüístico", tema polêmico, que foi e está sendo amplamente discutido nas universidades do Brasil inteiro. Você esperava toda essa repercussão?

MARCOS BAGNO -A noção de preconceito lingüístico é velha como a humanidade. Na própria Bíblia já encontramos referências à discriminação de pessoas pelo seu modo de falar (Juízes 12: 4-6), pessoas que foram mortas por ter uma pronúncia diferente do esperado. Nas primeiríssimas páginas do Curso de Lingüística Geral, obra fundadora da ciência lingüística moderna, Ferdinand de Saussure já lamentava a abundância de mitos, superstições e preconceitos que envolvem tudo o que tem a ver com a língua. Com o desenvolvimento da sociolingüística, a partir da década de 1960, a questão do preconceito lingüístico ficou ainda mais explícita quando ficou óbvio que o preconceito lingüístico é, na verdade, um disfarce para o preconceito social: não é o modo de falar da pessoa que é discriminado ou ridicularizado, é a própria pessoa, em sua identidade individual e social. Só mesmo uma pessoa de visão estreita e fascistóide como uma tal de Caia Fittipaldi pode alegar que a noção de "preconceito lingüístico" não tem fundamentação na sociolingüística, além de tentar dizer que a própria terminologia "preconceito lingüístico" é mal formada. Ela devia parar de tentar "defender" o português brasileiro e estudar um pouco mais. Tudo o que fiz, no meu livro, foi escancarar uma série de idéias que já vinham circulando no meio acadêmico e na pesquisa sociolingüística fazia muito tempo. Em quase todo trabalho de sociolingüística há alguma referência à discriminação das pessoas que falam variedades lingüísticas menos prestigiadas, mas é sempre uma referência rápida, uma palavra de ordem no final do texto. Eu quis analisar a coisa mais profundamente. Não esperava tamanha repercussão, mas ela veio provar que a coisa andava engasgada na garganta dos brasileiros em geral e, sobretudo, dos professores, que se viam obrigados a ensinar uma língua estrangeira para seus alunos e a condenar como "erro" as características lingüísticas que distinguem a nossa língua da língua dos portugueses.

REVELA - O que poderia ser feito para ampliar a questão e sua discussão a nível nacional?

MARCOS BAGNO - Antes de mais nada, derrubar o muro de intolerância e obscurantismo que cerca os nossos meios de comunicação. Hoje em dia, no Brasil, o principal veículo propagador do preconceito lingüístico é, sem dúvida nenhuma, a mídia. A universidade já está consciente da necessidade de renovar os métodos de ensino de língua, os organismos oficiais de educação já adotaram perspectivas mais esclarecidas e democráticas a respeito, os gramáticos de verdade já vêm incorporando novas teorias em seus trabalhos, mas a mídia, por representar os interesses das nossas reduzidas elites dominantes, apegadas a um passado colonial e dispostas a tudo para manter os privilégios que fazem do Brasil o campeão mundial da injustiça social, a mídia não quer nem ouvir falar disso. O sucesso de uma figura triste como Pasquale Cipro Neto é a prova mais eloqüente disso: normativista até a medula, falsamente moderninho, intolerante, carente de qualquer fundamentação teórica, preconceituoso sobretudo quando se diz não preconceituoso (basta fazer uma rápida análise de seu discurso para ver a ideologia ali presente), ele lidera uma legião de aventureiros igualmente despreparados e munidos exclusivamente da gramática normativa mais estreita. A recusa da mídia em debater cientificamente a questão lingüística fica evidente nas muitas reportagens que têm saído sobre o tema: entrevistam lingüistas e pesquisadores sérios, sim, mas só para contrapor à fala deles o discurso retrógrado e estreito dos puristas inveterados. A reportagem da Veja de novembro de 2001 foi o melhor exemplo disso. No começo de 2002, a revista Cult também publicou uma ampla matéria sobre "o declínio dos gramáticos", em que chama o Pasquale de "vítima". Uma vítima que tem todo o espaço do mundo para divulgar suas idéias mofadas, que vende 200.000 exemplares de suas bobagens, é rir para não chorar...

REVELA - Agora um tema muito delicado: o projeto de lei Aldo Rebelo. Pelo que sabemos, desde o início você não foi favorável a este projeto de lei, publicou inclusive um livro sobre a questão: "Estrangeirismos, guerras em torno da língua". Qual o motivo de sua aversão ao projeto?

MARCOS BAGNO - Antes de mais nada, porque o projeto inicial não teve a participação de nenhum lingüista, de nenhum especialista da área. Se alguém quiser legislar sobre práticas cirúrgicas, é óbvio que vai consultar os médicos. Mas no caso da língua, todo mundo acha que pode dar palpites à vontade. Há uma recusa veemente em reconhecer que a língua é objeto de uma ciência e que, embora ela pertença a todo e qualquer cidadão, há pessoas especializadas no assunto, que dedicam a vida ao estudo da linguagem e de suas implicações sociais, culturais, filosóficos etc. Assim, quando não se faz uma análise científica da questão, o único suporte "teórico" vai ser a velha doutrina gramatical tradicional, as velhas concepções pré-medievais do "certo" e do "errado". Nenhum lingüista acha bonito ou defende bobagens como chamar um bazar de coisas usadas de "garage sale"; mas não é uma questão de gosto pessoal: é um fenômeno sociológico e tem de ser encarado como tal.

REVELA - Como você vê a idéia de uma política lingüística para o Brasil?

MARCOS BAGNO - O Brasil não tem política lingüística. Tradicionalmente, nunca teve. As poucas ocasiões em que houve atitudes oficiais em relação a questões lingüísticas foram todas marcadas por autoritarismo e intolerância. No século XVIII, o primeiro-ministro português, o Marquês de Pombal, proibiu o uso e o ensino da língua geral, de base tupi, que era a língua realmente mais empregada no território brasileiro então, não somente pelos índios das diferentes etnias, mas também pelos mestiços de índia e europeu, pelos brancos da colônia. Impôs-se a ferro e fogo o português, cortando na raiz um elemento cultural importantíssimo que poderia ter sido a matriz da nossa identidade nacional. Hoje, nós poderíamos ser um povo bilíngüe, falando português e tupi, o que representa uma riqueza cultural sem tamanho. Ao contrário de alguns dos nossos vizinhos, como o Paraguai, o Peru e a Bolívia, onde ao lado do espanhol oficial a população também dispõe de uma língua indígena (ou mais de uma) como veículo de comunicação e de entrelaçamento comunitário, nós temos apenas a língua estrangeira, trazida pelos colonizadores. E para piorar tudo, não podemos nem usar a nossa versão do português, o nosso português brasileiro, porque é considerado tosco, estropiado e cheio de erros por não ser uma cópia fiel do português de Portugal. Na ditadura de Getúlio Vargas, nova irrupção de autoritarismo: criou-se o "crime idiomático" e houve uma forte repressão contra quem falasse alemão ou italiano, sobretudo na região sul do Brasil. De uma hora para outra, pessoas que tinham algum dialeto italiano ou alemão como sua verdadeira língua materna foram obrigadas a reprimir sua identidade individual e social para adotar uma língua que lhes era totalmente estranha. Mais recentemente, com o desastroso projeto de Aldo Rebelo, mais uma tentativa grosseira e autoritária de reprimir usos lingüísticos. O Brasil é considerado pela UNESCO como um dos países com maior diversidade lingüística do mundo. No entanto, aqui no Brasil, a ideologia dominante nos bombardeia com a idéia de que todo mundo fala português e que todos os brasileiros se entendem perfeitamente. Seria preciso abandonar o mito da língua única, aprender a respeitar a diversidade lingüística, dar status oficial às diferentes línguas faladas no país, incentivar o estudo e o ensino dessas línguas, favorecer publicações e outras formas de comunicação (televisão, rádio, jornal etc.) nessas tantas línguas. Outra coisa importante, seria favorecer oficialmente a divulgação internacional do português brasileiro. Nas universidades estrangeiras onde há cursos de português, quem domina são os portugueses, apesar de representarem um país minúsculo, sem nenhuma projeção internacional e com uma população pequena. É que eles têm uma política lingüística bem desenhada, ao contrário de nós. O governo brasileiro poderia oferecer cursos de português brasileiro nas universidades estrangeiras, criar leitorados de português brasileiro em grandes centros de pesquisa, e por aí vai.

REVELA -Na sua perspectiva, quais são os rumos da Lingüística Brasileira para os próximos anos?

MARCOS BAGNO - A pesquisa lingüística brasileira é uma das melhores do mundo. Quando os lingüistas brasileiros participam de congressos científicos internacionais, os pesquisadores estrangeiros ficam admirados com a qualidade dos nossos trabalhos. O português brasileiro, por exemplo, vai ser em breve a única língua da família românica a ter sua gramática da língua falada exaustivamente descrita e analisada: é o projeto Gramática do Português Falado, que já publicou 7 volumes de estudos e agora vai publicar a gramática propriamente dita. Temos um grande volume de pesquisa sociolingüística de descrição das múltiplas variedades do português brasileiro, temos alguns importantes projetos que estão investigando a história da língua portuguesa no Brasil, temos uma produção importante na área da lingüística aplicada etc. etc. O que realmente falta é o reconhecimento da importância da lingüística para a vida nacional, para as definições das estratégias educacionais, para a formulação de uma política lingüística coerente etc. Infelizmente, quando o assunto é língua, só se dá ouvido a aventureiros como Pasquale Cipro Neto ou a parques jurássicos como a Academia Brasileira de Letras.

REVELA - E quanto à Educação? O senhor vê uma saída para o que chamamos de "a crise educacional"?

MARCOS BAGNO - A educação brasileira é uma das piores do mundo. Como tudo neste país, a distribuição é radicalmente desigual. Uma parcela ínfima da população tem acesso a boas escolas e boas univesidades, enquanto a imensa maioria fica relegada ao analfabetismo pleno, ao analfabetismo funcional ou a escolas de péssima qualidade. O ensino público brasileiro é um perfeito desastre, e isso devido a uma política sistemática de desmantelamento do sistema educacional. Escolas sucateadas, professores mal pagos, programas educacionais burocratizados e obsoletas, tudo isso cria uma educação nacional indigente, que está em perfeita coerência com tudo o que é público no Brasil, como a saúde, o transporte, a habitação etc. Tudo passa pelo mesmo problema de sempre: a efetiva democratização da sociedade, a diminuição do fosso das desigualdades, a distribuição dos bens sociais. Há muita esperança nas promessas do novo governo do Partido dos Trabalhadores, mas quando a gente vê as alianças que o PT tem feito, só dá para desanimar.

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